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Variações sobre um tema, por Aaron Cutler e Mariana Shellard
10 de março de 2019

 

Variações sobre um tema:

Diga amém, alguém Ornette: Made in America

Aaron Cutler e Mariana Shellard

 

A sessão dupla “Variações sobre um tema” traz para a Cinemateca Capitólio Petrobras duas grandes obras do cinema documental que apresentam o melhor da música e cultura norte-americanas. Diga amém, alguém (1982), dirigido por George T. Nierenberg, é um comovente retrato da vida de cantores gospel, protagonizado por Thomas A. Dorsey e Willie Mae Ford Smith, o primeiro, responsável por levar a palavra de Deus para o blues e este para dentro das igrejas, e, a segunda, a voz que popularizou a recém criada música gospel nos anos de 1930. Ornette: Made in America (1985), dirigido por Shirley Clarke, mimetiza o estilo ousado e único do criador do free jazz, Ornette Coleman, através de cenas de concertos realizados em diferentes momentos de sua carreira, entrevistas e dramatizações esporádicas de sua infância. Os dois filmes passarão em cópias digitais recém-restauradas da distribuidora norte-americana Milestone Film & Video.

Diga amém, alguém abre em Missouri, no Sul dos Estados Unidos, com Thomas A. Dorsey (1899-1993) dizendo febrilmente que o Evangelho, por toda a história, foi o comunicador das boas novas. Na cena seguinte acompanhamos Willie Mae Ford Smith (1904-94) ao cantar a pregação e falar sobre o significado de ser uma cantora gospel, “…um sentimento interno, você não pode controlar, ele entra entre a medula e os ossos”. A partir desses dois longevos e vibrantes personagens, aprendemos quão revolucionária foi a música gospel ao levar o blues, um estilo considerado profano, para dentro das igrejas protestantes dos Estados Unidos, e tornar-se um dos gêneros mais populares de música. Paralelamente acompanhamos de perto a vida de importantes cantores gospel, seus conflitos familiares, o sucesso material, o chamado divino e as contradições do machismo perante um dom predominantemente feminino.

O percurso do filme é suave e sucinto e aproxima o espectador dos personagens de forma calorosa. Emocionantes apresentações musicais, durante as quais ouvimos as boas novas nas vozes de grandes cantores como Willie Mae, Zella Jackson Price, as irmãs Barrett e os gêmeos O’Neal, em igrejas e na convenção anual de gospel fundada por Dorsey em 1932 (National Convention of Gospel Choirs and Choruses), são intercaladas com entrevistas e conversas entre familiares e amigos. Em uma cena vemos Willie Mae discutir com seu neto Keith, que se opõe a pregação feminina, lhe dizendo que “…se uma mulher tem a gentileza de cozinhar sua comida, fazer sua cama, limpar sua casa, cuidar de seus filhos, como ela não pode carregar a Palavra?”. Na cena seguinte, ela aconselha a jovem Zella Jackson Price sobre a importância de valorizar o próprio trabalho sem deixar que a família frustre um chamado divino.

Após Nierenberg (1952-presente), então um jovem cineasta nova-iorquino, ter realizado o documentário No Maps on my Taps (1979), sobre os derradeiros mestres do sapateado negro de rua, procurava um tema para seu próximo filme. Ele recebeu uma sugestão do amigo e músico Ry Cooder de explorar o mundo gospel e passou a frequentar sermões e conviver com a comunidade. Depois de meses de imersão filmou Diga amém, alguém em apenas quinze dias. Segundo o diretor, o fato de ter pouco conhecimento sobre o assunto lhe deu “maior liberdade de vivenciar esse novo mundo sem noções pre-concebidas”. O resultado é um ato comovente de comunhão.

Experiência semelhante ocorre em Ornette: Made in America e a música transformadora do jazzista Ornette Coleman (1930-2015). O compositor e multi-instrumentalista foi um virtuoso autodidata que começou a praticar em uma igreja batista em sua cidade natal de Fort Worth, no Texas e, ainda no início de sua juventude, se mudou para Los Angeles, onde seu estilo experimental causava violentas reverberações na plateia e entre os outros músicos, que frequentemente culminavam na destruição de seus instrumentos. No filme, o músico James Clay fala sobre a “mística de Ornette”, “quando eu o conheci em Los Angeles… a seção rítmica inteira simplesmente levantou e saiu do palco, e deixou o saxofonista lá para tocar sozinho”. Em outro momento o músico e teórico George Russell diz “Acho que existia um sentimento… de apreensão, de ser ameaçado por essa mente sua… Escutei sua música e sabia que ali estava a música aterrorizante nas suas implicações, que as pessoas teriam que aprender em novas disciplinas”.

O filme se estrutura de forma não linear e intercala depoimentos de músicos, teóricos, amigos e parentes, trechos de apresentações musicais e dramatizações da infância do músico, sugerindo uma narrativa do pobre garoto que foge de sua cidade natal e retorna como herói. O fio condutor é a performance de uma nova composição sinfônica de Coleman, “Skies of America”, realizada em Fort Worth, a partir da qual alternam-se outras peças musicais, como uma homenagem ao arquiteto visionário Buckminster Fuller – um dos heróis do jazzista – o encontro com os músicos marroquinos de Joujouka, do qual também participam William S. Burroughs e o músico e crítico Bob Palmer, e uma experiência midiática de comunicação via satélite com músicos tocando juntos, a quilómetros de distância, no Harlem e no World Trade Center. O filme também traz reflexões e histórias contadas por Coleman como quando pediu a um médico para ser castrado (o qual sugeriu fazer uma circuncisão como ato simbólico) e sobre quando foi convidado pela NASA para fazer parte de um programa espacial.

Ornette: Made in America foi dirigido pela renomada cineasta nova-iorquina Shirley Clarke (1919-1997), que começou a registrar a relação entre o músico e seu filho e baterista Denardo Coleman em 1968, logo após a estreia de seu documentário Retrato de Jason (1967). Ela teve problemas com o produtor do projeto e o material acabou sendo praticamente abandonado por mais de uma década, retomado apenas quando a artista e produtora Kathelin Hoffman Gray a convidou para participar do projeto multi-mídia, Caravana de Sonhos, que contava com a realização do concerto sinfônico de Coleman e com a participação da Orquestra Sinfônica de Fort Worth. Na época, Clarke estava envolvida em experimentações pioneiras de vídeo arte, o que a levou a incorpora-las ao filme, somando-se aos materiais em 8 mm e 16 mm filmados por ela e pelo cinegrafista Ed Lachman (também um dos cinegrafistas de Diga amém, alguém).

Ornette: Made in America e Diga amém, alguém juntos contam uma história de criação e devoção originárias da cultura negra norte-americana. Eles carregam uma força musical virtuosa e universal que conduz o espectador por experiências catárticas, embaladas pelas vozes e melodias desses super-humanos que compartilham suas vidas na tela.

 

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