“Porque Eu Não Me Tornei um Crítico de Cinema”
Por Thom Andersen
Trecho da introdução do livro Slow Writing: Thom Andersen on Cinema, publicado em inglês pela The
Visible Press em setembro de 2017. Mais informações sobre o livro podem ser encontradas no site
www.thevisiblepress.com. A mostra “Hollywood e além: O cinema obstinado de Thom Andersen” vai
acontecer na Cinemateca Capitólio Petrobras entre os dias 19 e 23 de janeiro de 2018.
Revendo esta coletânea eu me dei conta que faltou um manifesto. David James escreveu um (em
Allegories of Cinema) e Jonathan Rosenbaum já escreveu vários (em Movie Wars, Essential Cinema, e
Goodbye Cinema, Hello Cinephilia). Outros ainda são necessários porque o cinema que eu valorizo
tornou-se marginal, ao menos nos Estados Unidos. Tem ele uma chance?
Existe um mito de que o cinema decaiu depois de atingir um pico artístico nos anos de 1960 e início de
1970. Esse mito perdura e cresce porque os melhores diretores de hoje não vêm dos tradicionais centros
da cultura cinematográfica (Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália); eles vêm de Portugal,
Romênia, Finlândia, Bélgica, Argentina, México, Tailândia, Malásia, Taiwan, China, Filipinas e Irã.
Devido ao racismo e ao nativismo, os filmes desses países recebem pouca atenção e distribuição nos
Estados Unidos.
É verdade que o cinema já não está mais no centro de nossa cultura. Mas essa cultura se fragmentou, o
pluralismo domina. E como disse Bill Cosby a Robert Culp em Os Perigosos, lamentando o declínio da
profissão deles de detetives particulares, “Não é sobre nada”. É essa a condição pós-moderna?
Ainda assim, é possível contestar e combater o que Peter Wollen chamou de “pós-modernismo ocidental
totalizante”. Nós precisamos fazer cinema sobre alguma coisa. Precisamos ser mais radicais. Afinal de
contas, como disse Lenin, você jamais poderá ser tão radical quanto a realidade. Então vamos supor que
tudo o que lemos nos jornais e revistas sobre cinema é mentira. Os filmes sobre os quais eles escrevem
não importam. Eu não me refiro apenas aos filmes de super-heróis feitos para jovens, mas também aos
abordados no New Yorker e no The New York Review of Books. Na melhor das circunstancias, esses são
filmes que assistimos com prazer e nos esquecemos logo em seguida. Críticos e comentaristas precisam
fingir que esses filmes são relevantes porque muito dinheiro foi investido neles. Mas como disse Jean-
Marie Straub, filmes devem ser feitos como se o dinheiro não existisse.
E ainda tem a televisão. Antes de morrer, Chris Marker disse a um entrevistador, “O crescimento
exponencial da estupidez e vulgaridade [na televisão] é um fato concreto qualificável e um crime contra a
humanidade.” Colocando em outras palavras, a televisão mata mais que o cigarro. Em sua retórica,
atualmente, a propaganda do governo mais tirânico é menos insultante que os comerciais que assistimos
na TV norte-americana (inclusive os chamados anúncios públicos). Nós perdemos anos de nossas vidas
assistindo a comerciais que não queremos assistir e não precisamos, comerciais que nos insultam e que
tentam nos tornar idiotas. Nós estaríamos melhor se passássemos esse tempo fumando; pelo menos,
assim, estaríamos engajados em algum pensamento.
E frequentemente, o ‘conteúdo’, como eles chamam atualmente, não é melhor. Se não existe vida no
‘reality show’, que esperança pode haver para o resto? A televisão alcançou “a trivialização de tudo” – e
Noël Burch escreveu isso trinta anos atrás. Como pode ficar pior? Existe sempre uma maneira.
Algo melhor é possível. A maioria de nós que pensa no cinema e na televisão sabe disso. Não precisamos
acabar com os filmes de HQ: a maioria de nós leu HQs, em algum momento da vida, sem gorar o cérebro.
Não precisamos acabar com os filmes que nos entretêm contanto que eles ameacem nos entediar, contanto
que eles deixem algo que perdure. Nós precisamos acabar com os trabalhos que não honrem nossa
inteligência. Precisamos eliminar comerciais que são inescapáveis, ou seja, na televisão, nos outdoors e
websites.
Não precisamos de mais obras-primas. Precisamos de obras que são úteis e modestas. Precisamos de
obras que reconheçam o que sabemos, mas não acreditamos. Precisamos de imagens verdadeiras e
válidas, nas quais podemos reconhecer o mundo e sua beleza; imagens que nos ensinem sobre nós
mesmos e nosso mundo. Não apenas uma imagem, mas uma imagem que é justa (1) parafraseando Godard.
Essa obra existe, e exige de nós que escrevemos sobre cinema, nossa atenção e nosso obstinado apoio.
(1) No texto original de Andersen: “Not just an image, but an image that is just.”